Ouça enquanto lê |
Eu não gostava de café com gelo, Guitar Hero ou Los Hermanos,
juro. Aí eu comecei a gostar de números pares.
Às vezes eu saía pra caminhar na praça e ficava observando.
Observava aquela senhorinha dando comida àquelas pombas nojentas, bem coisa de
filme mesmo.
E tinha também aquele gordo barbudo, que sempre tava com um
copo de cerveja na mão, sentado no bar do Seu Geraldo, achando que conseguia
tapar sua cara rechonchuda atrás daquele jornal da semana passada, mesmo que
todo mundo já soubesse que ele só ficava esperando aquela loira boasuda passar
correndo, como todos os dias naquela mesma hora, com um rabo de cavalo no topo
da cabeça, um shorts mais curto que o comprimento da palma da mão e sempre com
fones de ouvido e música no volume máximo. Ela, tinha cara de quem curtia, sei
lá, Maroon 5, U2, e se brincar até Beatles.
Tinha a minha vizinha meio metódico e pontual (aquelas coroa
gente boa) que acordava todos os dias às exatas 6:14 da manhã pra passear com
aquele cachorrinho fofo que ela chamava de Rex. Meio irônico, porque, a julgar
pelo nome você deve tá imaginando um cachorro gigante, colossal, que mais
parece um leão. Mas não, ele era tão pequeno que parecia um ratinho. Acho que é um Beagle... Mas nunca parei pra
prestar atenção nas classificações das coisas. Na verdade, muitas
especificações me irritam.
Agora, voltando à minha vizinha: é, 6:14. Não 6:15, 6:14
mesmo. Ela nunca tem nada marcado em horas com minutos ímpares. Sem caô! Passei
quase um mês tentando flagrar um atraso ou avanço de um minuto que fosse no
toque do despertador. PÉÉN, falha. Aquela maldita musiquinha da Maria Gadu toca
todos os dias às exatas 6:14 e eu não consigo acordar um minuto mais tarde há 4
meses, desde que me mudei pra cá.
O marido dela, do cabelo grisalho, que sofre um pouco de
calvice, me traz biscoitos todas as quartas-feiras às pontuais 16:15 da tarde
como pagamento pra eu ficar de olho em quem entra e sai do apartamento de cima,
onde eles moram. Acho que ele não gosta muito de fazer isso. Ou talvez ele não
goste é de mim, mas faz porque a mulher dele me adora. Tanto faz, os biscoito
são uma delícia! E só pra esclarecer, ele tem fobia à compromissos em horas com
minutos pares.
É, eu sei. Talvez seja só coincidência, ou talvez os clichês
dos filmes sejam válidos e os opostos se atraiam e se completem mesmo. Sei lá.
Como disse, não gosto de especificações, ditados, leis de newton, leis de
sobrevivência ou qualquer coisa estabelecida. Nada que não mude. (O mais
engraçado de tudo é que eu nem sempre tive esse pensamento. Mas ele mudou.
Ainda muda.)
Aí então o marido calvo da minha vizinha simpatia e pontual
resolveu mudar as coisas um pouco. Eu passei a gostar mais dele depois disso. E
passei a gostar de Anna Júlia e de jogar Guitar Hero com a filha dela. E passei
a gostar da filha dela. Mas isso veio depois.
Quarta-Feira, 22 de Março, 18:20 exatamente. Quatro batidas
na porta.
Primeiro fato escandalosamente anormal: 18:20. Seis horas e
vinte minutos da tarde. V-i-n-t-e minutos. Segundo fato escandalosamente
anormal: Quatro batidas na porta. Achei mesmo estranho e, involuntariamente,
fiquei esperando pela quinta. Nada. Quatro batidas. 4. Nem meia a mais. Nem 0,3
e 5 a mais. Quatro. 1, 2, 3, 4. Beleza, já deu pra entender, né? Quatro
batidas.
Levantei do sofá vermelho onde tinha passado a manhã, afundado.
Vista pra escada de acesso ao apê de cima. Sacaram a estratégia, né? Eu
realmente gostava dos biscoitos. Mas eu nunca entendi qual a finalidade de se
colocar uma janela com vista pra dentro do prédio. Beleza, sem discussões. Abri
a porta.
Juro
que quase caí pra trás. Ruiva, branquinha, pequenininha, olhos verdes e dedos
finos. Unhas com um esmalte descascado num tom que me parecia turquesa, ou
qualquer coisa assim.
-Oi. — droga, fiz merda.
Fiz merda, fiz mer —
-Oi…
-Quer alguma coisa?
-Na verdade, minha mãe me
pediu pra te trazer uns biscoitos e perguntar se alguma…como é que ela diz
mesmo? Se alguma promís...
-Se alguma promíscua
subiu as escadas hoje?
-É, isso aí mesmo.
-Fala pra ela que não…
Mas diz que uma ruivinha desceu aqui e quase me fez cuspir refrigerante quando
eu abri a porta. — Que merda eu tava fazendo? Sério.
-Como?
-Nada, não. Pode dizer
que não subiu ninguém.
-Não… eu ouvi o que tu
disse - Droga.
-Hm…Tá a fim de entrar?
-O quê?
-Tomar alguma coisa, sei
lá. Ver um filme.
Daí ela riu.
-Não, valeu. Quem sabe outro dia. Tenho que
levar o Rex pra passear agora. — Nunca ouvi um risinho tão agudo que não fosse
irritante.
-Às 6:31 da tarde?
-É, uai… Por quê?
-Dezoito e trinta e um?
Tem certeza?
-Sim, senhor. Algum
problema?
-Não, nada…Só achei que
ele gostava mais de passear de manhã.
-Ele não gosta de nada,
eu é que gosto de andar à tarde.
-Ah, tendi.
-Até.
-Até – Ela já tava
subindo as escadas de novo - Só uma pergunta…Você é que vai me trazer os
biscoitos a partir de agora?
-Acho que sim! Algum
problema? –ela parou na escada.
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